#28 - Last book you read
Precisamos falar sobre o Kevin
Autora: Lionel Shriver
Ano: 2003
País: Estados Unidos
"(...) durante boa parte da infância de Kevin, aquelas feições estreitas, angulosas, me torturaram com meu próprio reflexo. Mas, neste último ano, seu rosto começou a se encher e à medida que vai se alargando, reconheço a sua ossatura mais larga, Franklin. Embora seja verdade que, no passado, busquei faminta na fisionomia de Kevin alguma semelhança com o pai, agora vivo brigando com essa impressão maluca que ele faz de propósito, para eu sofrer. Não quero ver a semelhança. Não quero detectar os mesmos maneirismos, aquela palmada característica, de cima para baixo, quando você descartava algo porque era insignificante, como, por exemplo, a ínfima questão de nossos vizinhos, um atrás do outro, proibirem as crianças de brincar com o nosso filho. Ver seu queixo forte retesado num ângulo belicoso, seu largo sorriso ingênuo retorcido num esgar malicioso, é como considerar meu marido possuído."
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Em abril de 1999, dois estudantes mataram treze pessoas, feriram
outras vinte e um e depois se mataram no que ficou conhecido como o Massacre de
Columbine. Esse episódio é, até hoje, o mais conhecido caso de atiradores na
escola - que já não são poucos. Filmes, livros e documentários sobre isso não
têm em comum apenas se tratar de um mesmo tema, mas todos se debruçam no que
parece ser a questão crucial em torno da carnificina de qualquer natureza: por quê? O que motiva pessoas a cometerem assassinatos em massa? Ou, especialmente, o que motiva adolescentes - ou até mesmo crianças - a fazê-lo?
Quatro anos depois de Columbine, o livro Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver, foi lançado. Nele, a autora conseguiu construir uma trama extremamente original sobre o massacre escolar fictício cometido por Kevin Kachadourian. O pulo do gato foi não apenas a narradora pouco usual em histórias desse tipo – a mãe do assassino é quem escreve as cartas que formam o livro -, mas a sua própria estrutura que consegue se desconstruir e amarrar suas próprias pontas de uma maneira nem sempre vista por aí.
Precisamos falar sobre o Kevin é vendido como a história de um
psicopata. Achei interessante o fato de não ter encontrado a palavra em nenhum
momento no livro, mas desde que o leitor tenha algum conhecimento do seu
significado, não é difícil fazer a relação. A psicopatia é, numa explicação
superficial, a incapacidade de sentir empatia para com as pessoas. Nos últimos
anos, o termo e os sinais que ajudam a identificar o psicopata têm-se
popularizado.
Eva Khatchadourian escreve para o ex-marido, algum tempo depois do
massacre, para tentar entender o que aconteceu. Não é uma simples exposição de
fatos; são sequências e sequências de pensamentos que tornam até difícil
acreditar que estamos lendo sobre pessoas que não existem – uma qualidade importantíssima
na ficção. Eva, descendente de armênios, cosmopolita, dona da sua própria
agência de viagens e ironicamente portadora do nome da mãe de todos os homens, casa-se com o homem que menos esperaria
amar: um americano. Refletindo sobre o que afinal fez com que Kevin viesse ao
mundo, a resposta é perturbadora: ela não queria ter um filho. Aliás, o livro
todo é perturbador por tocar no que talvez seja uma das relações emocionais
mais delicadas e sacralizadas de todas: a relação mãe e filho. Está exposto ali
aquilo que se tem medo de dizer e mais ainda de entender: nem sempre amamos
nossos filhos. E, pior ainda, é possível que os odiemos.
Como seria de se esperar, é comum retirar daí a conclusão de que
Kevin se tornou um assassino por já ter nascido “rejeitado” pela própria mãe –
o que considero uma conclusão no mínimo superficial. A reflexão de Eva sobre
todos os anos em que conviveu com o filho podem ser tudo, menos simples,
tornando impossível retirar dali apenas argumentos de causa e efeito diretos.
Isso também é perturbador: a possibilidade de não existirem respostas, sendo
que elas são exatamente aquilo que tanto queremos.
Kevin Khatchadourian passa longe do que se considera uma criança “normal”;
literalmente desde o seu nascimento,
Eva desconfia que existe algo de errado. Passando de um bebê que não para de
chorar quando está sozinho com a mãe até uma criança que contrasta seu completo
desinteresse em relação a qualquer estímulo com uma dissimulação assustadora
para alguém tão pequeno, ela tenta entender o que move o filho. Seria o tédio
em relação a qualquer coisa que o mundo pudesse lhe oferecer? Seria uma raiva
injustificada contra tudo? Seria uma desordem afetiva, os esforços que não
foram o suficiente, uma necessidade constante de representar um papel, seria
puramente apatia?
Como se não bastassem todas essas questões que são o suficiente
para manter vários profissionais ocupados, a narrativa tem uma condução que não
posso classificar de outro modo que não excelente. Estou fazendo um esforço
para encontrar algum defeito, mas confesso que não estou obtendo sucesso nenhum
na minha empreitada. Talvez haja uma
pequena perda do ritmo na narração de fatos que Eva não presenciou diretamente,
mas nada que chegue a prejudicar o livro – que teve nada menos que o efeito de
me derrubar completamente assim que terminei de ler as linhas finais. Não
existe uma maneira de ser forte lendo algo tão perturbador, que toca tão profundamente
naquilo que menos somos incentivados a pensar. Não é uma descrição qualquer de
uma história comum; além de passar a quilômetros de distância do clichê,
estamos lendo pensamentos vindos de uma pessoa,
realmente tentando procurar algum sentido naquilo em que parece não haver
nenhum – e, pior, tendo que se deparar com a possibilidade de que, bem, talvez
simplesmente não haja.
Acho provável que não exista uma expressão mais eficiente para
descrever Precisamos falar sobre o Kevin do que um soco no estômago.
2 comentários:
Oi Moony bom post, fazia tempo que eu não passava por aqui. Porém vejo que nada mudou, pois seu post's continuam com uma excelente qualidade!
bjos tdo de bom pra ti!
Vi apenas o filme, mas agora creio que o livro seja melhor ainda.
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