segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Retrato de grupo com nódoa de sangue

“Uma vingança de sangue é um ciclo de violência retaliatória, em que os familiares de alguém que tenha sido morto, lesado ou desonrado buscam vingança matando ou punindo fisicamente os culpados ou seus familiares. Historicamente, a palavra vendetta é usada para denotar uma vingança de sangue.” (wiki)


Abril despedaçado é mais um caso de “livro que vi na biblioteca e não aguentei de ansiedade até pegar”. Eu conhecia o filme, mas não sabia que era baseado em um livro; pior ainda, não fazia a menor ideia de que o livro fosse albanês. Nunca vi o filme inteiro, então não posso dizer nada sobre a adaptação, mas já acho muito interessante que tenham adaptado uma história que se passa nas desoladas montanhas cobertas pela neve da Albânia para o sertão nordestino.

Abril despedaçado (Prilli i Thyer)
Autor: Ismail Kadaré
Ano: 1978
País: Albânia

"Gjorg procurava recordar famílias que estavam fora da vendeta e não via nelas nenhum indício especial de felicidade. Até lhe parecia que, à margem das ameaças, elas não sabiam dar valor à vida. (...) Mas o principal não era isso. O principal era o que transcorria no seu íntimo e que era a um só tempo belo e terrível. Nem ele mesmo saberia descrevê-lo. Tinha a impressão de que o coração saíra de seu peito, expandindo-se em todos os sentidos, e, assim aberto, deixava-se ferir facilmente, alegrava-se e se entristecia por qualquer coisa, ofendia-se, doía, enchia-se de felicidade ou de pena por coisas grandes e miúdas, até por aquela borboleta, aquela folha, a neve sem fim ou a chuva aborrecida daquele dia. Tudo o atingia de frente, mas a tudo ele suportava, e poderia suportar até mais, ainda que os céus desabassem sobre ele."

O livro conta a história de Gjorg Berisha, um rapaz de vinte e seis anos que foi incubido da tarefa de realizar a vendeta do irmão, morto um ano e meio antes. O início da vendeta se dá setenta anos antes disso, quando um viajante bateu na porta dos Berisha. Segundo o rígido código de conduta albanês, o Kanun, um hóspede deve ser extremamente respeitado enquanto estiver sob os cuidados de quem lhe hospeda. Assim, os Berisha acolhem o homem que, por um acaso infeliz do destino, acaba sendo morto enquanto ainda é seu hóspede, fazendo com que a responsabilidade da sua vendeta caia sobre a família. Os Berisha se veem obrigados a realizar a vendeta com a família culpada pelo assassinato, os Kryeqyq, e são esses acontecimentos que, quarenta e quatro mortes depois, vinte e duas de cada família, levam Gjorg a fazer uma tocaia para Zef Kryeqyq.

O Kanun é quase ele mesmo um personagem, presente em cada página, regendo cada passo dos outros personagens. Outros personagens importantes da trama são Diana e Bessian Vorp. Recém casados, eles resolvem passar a lua de mel nas aldeias dos montanheses mais por um capricho dele do que por vontade dela. Bessian é um escritor e está particularmente interessado - pra não dizer obcecado - com a tragicidade e imponência do Kanun na vida dos montanheses. Sua esposa não gosta tanto da experiência quanto ele, mas um dia, quando veem Gjorg por acaso perto do lugar por onde passavam, ela se fascina pelo rapaz marcado pela morte.

Regendo a vida dos montanheses em tudo o que se possa imaginar, especialmente nos casos de vingança, o Kanun está tão arraigado na cultura do lugar que as autoridades albanesas não têm influência nenhuma no costume e fingem não ver o que acontece. No meio das montanhas e da neve, vive uma aldeia em que a vida serve para se construir a honra da morte. A dualidade do conflito de Gjorg é fascinante; se por um lado ele não tem vontade nenhuma de matar e gostaria que nada disso precisasse acontecer, por outro ele sabe que a vendeta é, de certa forma, o que dá algum sentido à vida. Com direito a um mês de trégua - a bessa - até que um integrante da família Kryeqyq continue a vendeta e comece a tentar matá-lo, Gjorg percebe que sua vida se divide claramente em duas partes: os vinte e seis anos que o levaram até ali e os trinta dias antes do fatídico dia de abril em que seu assassinato será autorizado. Com uma tarja preta costurada na roupa indicando que está marcado para morrer, Gjorg, o último homem da família Berisha depois de seu pai, está honrado e aterrorizado. O que é a honra, afinal? Para que ela serve? De quem é a culpa? Por que o sentido da vida é a morte?



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